Autoridade rural

O engenheiro agrônomo Paulo Castanheira é nome nacional no quesito ‘extensão rural’. Ocupou cargos estratégicos e desenvolveu importantes projetos na extinta Embrater, Sebrae, Emater, Asbraer Ministério da Agricultura e outras entidades ligadas à terra. Conheceu o professor Aníbal em 1990, com quem mantém laços por pura afinidade.

Repórter – Para começar, poderia nos falar um pouco das suas atividade profissionais?

Paulo Castanheira – Inicialmente trabalhei na Carminas. Depois trabalhei na Embrater, coordenando as Emater’s de todo o Brasil. Em 1990 o presidente Collor extinguiu a nossa empresa então passei a dar consultoria ao Sebrae. Fui presidente da Asbraer, de onde voltei a coordenar as Emater’s, com cinco mil escritórios, 25 mil técnicos e um orçamento em torno de 800 milhões de reais. Fui coordenador do projeto ‘Pró-várzeas’, do Ministério da Agricultura. Hoje sou diretor de relações com o mercado do Banco Regional de Brasília.

Repórter – Na década de 90 você concentrou suas atividades no Distrito federal. Por quê?

Paulo Castanheira – Quando a Embrater foi extinta fui dar assessoria ao Renato Simplício, secretário de agricultura do Distrito Federal. Já havia em Brasília a Federação das Associações de Pequenos Produtores (FEAP). Foi aí que conheci o professor Aníbal e toda sua dedicação por Casa Grande. Na época o meio rural era bem mais carente. Tinha o decreto Zé Aparecido (Decreto 8.690), que proibia construir escola, asfalto, posto de saúde, etc., na área rural. O Roriz derrubou esse decreto e, por isso, nos tornamos fãs dele. Eu, o Aníbal, o Moacir e outros membros da federação trabalhávamos o meio rural como um todo, trazendo as demandas e levando melhorias para a área rural, com muita dificuldade. A posse da terra sempre foi a maior complicação. Por exemplo, não podíamos construir uma escola em cima de uma posse. Mesmo que o governo quisesse, havia impedimento legal. Tinha que se trabalhar para legalizar a área. Não havia luz, nem água encanada. Era tudo muito difícil. Foi nessa luta que nos unimos muito.

Repórter – Todos os envolvidos eram idealistas e trabalhavam unicamente em favor das comunidades rurais?

Paulo Castanheira – Alguns decepcionaram. Tivemos ‘amigos’ problemáticos, que usavam o movimento em benefício próprio, até mesmo com vantagens financeiras. Ontem mesmo estive falando com minha esposa, a Marta, avaliando tudo o que passamos. Tem prós e contras. Há quem diga que fomos usados e que o que aconteceu não é o que imaginávamos. Mas sempre ficam coisas boas. Entre elas cito a amizade com o Aníbal e a dona Dione. Unimos-nos por causa das dificuldades. O Aníbal nos ajudava muito, principalmente na parte filosófica. Eu dava a contrapartida agronômica, já que sou agrônomo e conheço as comunidades rurais. Outro que cito é o Moacir, especialista em comunicação rural. Cada um trouxe uma parte e com isso ajudamos o Distrito Federal. Na região de Sobradinho há muitas escolas rurais resultantes da nossa luta. Brigávamos para que cada comunidade recebesse o máximo de benefícios. Hoje têm sub-administrações em todos os lugares, mas na época éramos nós que corríamos atrás de tudo. A mulher do governador Roriz, a dona Wesley, nos acompanhava. Não tem área rural em que ela não foi pelo menos 10 vezes. Dos locais ela ligava para órgãos como a CAESB e a CEB, pedindo soluções para instalação de poços artesianos, etc. O governador confiava na gente.

Repórter – Vocês se tornaram os principais agentes do movimento rural em Brasília?

Paulo Castanheira – Percorríamos todo o Distrito Federal por causa da federação, mas cada um tinha sua paróquia. O Moacir tinha a Euler Paranhos, o Aníbal cuidava de Casa Grande. As experiências e conquistas locais eram repassadas para as demais comunidades. Instituímos o correio no meio rural, bem como o segundo grau. Tentamos criar a carreira de professores rurais, porque nos designavam sempre os recém formados e logo que adquiriam alguma experiência eram transferidos para as escolas urbanas. O nível docente era baixo. O mesmo ocorria com a segurança. Quando havia problema e ligavam para os quartéis, os policiais nem conseguiam chegar aos locais por ser de difícil cesso ou por desconhecerem o caminho. Não havia endereçamento, etc. Hoje existem equipes de segurança treinadas para atuarem na área rural. Tudo isso foi conquista nossa. Pegávamos as demandas das associações e nós, um grupo com melhor formação, fazíamos com que fossem atendidas. E não fizemos isso por interesse próprio.

Repórter – Qual foi o maior empecilho para que esse esforço obtivesse melhor resultado?

Paulo Castanheira – O maior problema se chama posse da terra. Em 1990 fizemos um simpósio na ASBAC onde, durante quatro dias, compareceram quase quatro mil pessoas, para discutir a titulação definitiva das terras. Infelizmente até hoje não temos o título definitivo das propriedades. De lá para cá muita coisa mudou. Deputados que nem podiam ouvir falar sobre o assunto, hoje acham que isso já deveria ter sido feito. Há uma mentalidade diferente, mas ainda não chegamos ao ponto que gostaríamos. A falta de um documento definitivo da terra ainda nos causa frustração.

Repórter – Qual é a diferença de Casa Grande para os demais núcleos rurais do DF?

Paulo Castanheira – Casa Grande conta com a presença constante do Aníbal desde 1980. Isso não aconteceu em outras associações comunitárias, onde entram e saem presidentes em curto espaço de tempo, causando interrupções. Por ser formado em biblioteconomia, o Aníbal tem habilidade para escrever e se dedica de corpo e alma a Casa Grande. Poderia estar ganhando dinheiro fora dali, mas não. Além de não receber pelo que faz, ele e a dona Dione tiram dinheiro do bolso para garantir a continuidade das ações. Isso é vocação, determinação. Admiro, porque eu jamais faria isso. Ele analisou tudo. Primeiro cuidou de regularizar a vida de cada um. Todos tinham que ter a documentação em dia, ser registrados, batizados, estar na escola, etc. O Aníbal usou artifícios que na época eu questionava. Levantava de madrugada para pegar pão amanhecido nas padarias da Asa Sul e levar aos moradores de Casa Grande. Chegava às casas e perguntava: ‘seu menino esta na escola?’ ‘Não’. ‘Então não recebe o pão’. ‘Seu menino está registrado, vacinado, batizado?’ Ele botou tudo em ordem, acabou com o analfabetismo, arrumada a comunidade.

Repórter – Será ele um São Francisco, um Dom Bosco, um redentor da humanidade?

Paulo Castanheira - O Aníbal sempre trabalhou pelas pessoas mais humildes. Os mais ricos participavam menos, até mesmo porque não precisavam. Na verdade, quando alguém se dedica aos mais pobres, os ricos se afastam dele. Isso é comum na nossa sociedade. Entre os que têm mais condições, são poucos que se dispõe a apoiarem de fato. Mas em Casa Grande muitos ajudam, como o pessoal da Castelo Forte, do Hotel Criativa, Laticínios Araguaia, etc., etc. Até nisso o Aníbal obtém sucesso. Dedicou muito trabalho para evitar as invasões ocorridas em outros lugares. Mas Casa Grande ainda corre muito risco de sofrer com o parcelamento das chácaras, porque isso é coisa que meche com muito dinheiro. Quando você tem uma chácara que pode lhe render um milhão de reais e de repente fica constrangido em lotear, você pode apelar para as máfias, para os grileiros, etc. O Aníbal vai contra isso tudo e esse é o problema mais sério que ele enfrenta.

Repórter – Além do pão, que outros ‘instrumentos’ foram usados para manter a comunidade unida e atuante?

Paulo Castanheira - A educação ali é sucesso total, assim como a infra-estrutura. O Aníbal pressiona através do boletim, onde escreveu tudo o que é feito e o que se deixa de fazer. Com essa pressão Casa Grande é muito mais beneficiada do que as outras comunidades. Ali tem energia elétrica, segundo grau, posto de saúde, biblioteca, telefone convencional que permite o uso da internet, tudo! Na maioria das comunidades rurais o telefone rural-urbano não permite o uso da internet. O grande trunfo do Aníbal foi conhecer bem a comunidade. Quando se trabalha com pessoas se enfrenta vaidades, ciúmes, interesses, etc. Mas ele soube conduzir o processo durante esse tempo, porque sabia onde queria chegar.

Repórter – Você lhe deu apoio nesse projeto ‘obstinado’?

Paulo Castanheira – Na verdade eu fui um dos que trabalhou muito a cabeça dele para que deixasse Casa Grande em segundo plano, ‘passasse o bastão’ para outro, e começássemos a trabalhar Brasília como um todo. Com nossa experiência temos muito a dar para o Distrito Federal. Em Casa Grande já está claro para todos que a associação é imprescindível, que a união faz a força, etc. Ali, qualquer criança de dois anos sabe disso. O maior mérito do Aníbal é ter botado isso na cabeça de todos. O que deu muito certo também foi o fato dele ter casado com a Dione. Nem todas as mulheres aceitam esse desprendimento, essa dedicação do marido para as coisas da comunidade. Ao contrário, ela o acompanha e investe junto. Se fosse vaidosa, gananciosa, ou ele a teria largado, ou teria aberto mão da sua vocação. Casa Grande vai ser diferente pelo resto da vida. É um exemplo para o Distrito Federal, para o Brasil.

Comments