Aníbal Coelho

A história de Casa Grande entrou na vida do professor Aníbal quando este já tinha muita experiência com trabalhos comunitários e mobilização social. Sua história pessoal de vida demonstra que desde a infância ele trocou o pronome pessoal EU, pelo pronome pessoal NÓS. O possessivo MEU, pelo possessivo NOSSO. Os interesses particulares, pelo bem estar coletivo.

Logo cedo percebeu que o mundo não gira em torno do seu próprio umbigo. Que a fome, o frio, a dor e a alegria que sente, atingem igualmente seus semelhantes e se refletem em toda a natureza. Em vez de seguir seu ego, colocou seu espírito a serviço do que chamamos Deus, o que faz dele um grande sujeito.

Repórter - Quem é o professor Aníbal?

Aníbal - Nasci no interior

de Virginópolis, Minas Gerais, no dia 10 de janeiro de 1931. Sou o quarto filho, num total de 12. Meus pais, Otaviano Rodrigues Coelho e Petrina Coelho de Oliveira, profundamente religiosos, produziam leite, rapadura, cachaça e hortaliças. Nessa labuta nos educaram. Na idade escolar eu ia a pé e descalço até a escola, a quatro quilômetros da minha casa. A diretora Edite Coelho, reconhecendo meu esforço, deu um jeito para que eu fosse estudar no seminário dos salesianos em São João Del Rei, para onde fui, no dia em que completei 9 anos de idade. Fui de carona num caminhão até Belo Horizonte e lá me colocaram num trem e eu me vi perdido. Chorei por que não lembrava do nome da cidade e nem do colégio para onde estava indo. Um velho senhor me confortou e me ajudou a chegar até local. Na porta do colégio, mais uma provação: o porteiro pediu a carta de apresentação e eu não tinha. Mas mesmo assim os padres acabaram me acolhendo.

Repórter - Como foi a vida no internato?

Aníbal - Tinha pouca roupa, mal ficava sabendo da minha família, mas mesmo assim a vida era divertida. Durante o período de guerra (segunda guerra mundial) tudo era muito racionalizado. O que nos salvava é que ganhávamos ossos do quartel vizinho, com os quais se fazia uma sopa com bastante tutano. Ganhávamos também um pedaço de rapadura por semana. Em vez de café, tomávamos chá com ervas da região. A sociedade de São João Del Rei é que ajudava a nos sustentar. Tínhamos pais adotivos e o meu foi o Tancredo Neves, que me ajudou a ser gente. Terminei ali o ginásio, fiz o clássico e fui para Pindamonhangaba, São Paulo, fazer o noviciado. Voltei e fiz filosofia. Então parti para o tirocínio, que é o início da vida prática dos salesianos. Fui dar aula e, sobretudo, trabalhar com crianças e adolescentes em situação de risco social, porque a missão de Dom Bosco foi justamente assistir crianças e jovens órfãos da Itália do pós-guerra.

Repórter - Quando e como chegou a Brasília?

Aníbal - Estudei até o subdiaconato e lecionei em diversos colégios antes de chegar a Brasília. Fundei os colégios de Paraguaçu, de Vitória e de Belo Horizonte. Quando estava em Goiânia vim pela primeira vez para Brasília, em outubro de 1955, acompanhando Bernardo Sayão. Viemos para ver onde seria construída a nova capital federal. Gastamos mais de dois dias para vir de Goiânia até Brasília. Juscelino Kubitschek já havia anunciado que iria mudar a capital ainda no seu mandato. O Bernardo Sayão era entusiasta deste projeto e nós, uma turma de professores, o acompanhávamos. A partir daí todos os anos eu vinha a Brasília, mesmo depois que me mudei para Belo Horizonte. Ajudei a construir a igrejinha de madeira no Núcleo Bandeirante, aonde o Padre Roque era vigário. Finalmente, em 1963, mudei definitivamente para cá, para lecionar no colégio salesiano e trabalhar na UnB. Passei num concurso para trabalhar na Câmara Federal. Demorou para eu assumir o cargo, porque começou a revolução de 1964 e a Câmara foi fechada por um tempo. Trabalhava de manhã, de tarde e de noite. Adotei o lema do Juscelino Kubitschek, que pretendia fazer ‘cinqüenta anos em cinco’. Fiz vestibular para direito e para biblioteconomia. Passei nos dois e optei por biblioteconomia onde fui da primeira turma. Por ter sempre me envolvido com crianças necessitadas, enveredei pelo caminho do social. Ajudei a fundar e presidi a Associação dos Bibliotecários do Distrito Federal durante 14 anos. Por meio dela me empenhei em levar bibliotecas para as cidades periféricas do Distrito Federal. Meu envolvimento com a associação e com o movimento comunitário me rendeu quatro prisões porque isso, na época, era visto como atividade comunista.

Repórter - Como os governantes da época entendiam a sociedade?

Aníbal - Isso merece uma análise. Mas a idéia geral é que quanto mais ignorante é um povo, mais fácil é dominá-lo. E a gente queria promover a cidadania, levar o conhecimento à população, etc.

Repórter – Como já sabemos, no início da década de 80 o senhor assumiu a liderança do movimento comunitário deste núcleo rural, ao qual se dedica 24 horas por dia, investindo inclusive parte dos seus bens pessoais. Porque tamanha dedicação por Casa Grande?

Aníbal - Alguns até me perguntam: ‘Porque este sadismo?’ Eu praticamente me dedico o tempo todo à Casa Grande, abandonando a família, o lazer e minha vida particular. A razão é que eu sou gente porque tive o apoio de certa comunidade que foi a de São João Del Rei, Minas Gerais. Deixei meu pai e minha mãe para encontrar uma porção de pais e mães naquela cidade. São João Del Rei me fez gente. Sai um ‘Zé Coió’ lá da roça e terminei um doutor, graças às atividades dos salesianos apoiados pela comunidade São-joanense. Sinto um dever de gratidão. Entre os salesianos, Dom Bosco incutia muito na gente a gratidão. Dizia que a gratidão é a flor mais bonita que há no coração das pessoas. A gratidão é a primeira razão da minha dedicação à Casa Grande. Mas existe uma segunda razão: eu e a Dione somos muito religiosos. Quando houve em Brasília o ‘Primeiro Encontro de Casais com Cristo’, promovido pela arquidiocese, nós participamos. Na missa de encerramento a gente recebeu a relação e contatos de todos os ‘encontreiros’. O padre que celebrou a missa também recebeu esta relação e por ela me reconheceu, bem como toda minha família, pois havia sido vigário na cidade vizinha a Virginópolis/MG, onde nasci. Este padre era Don Ávila. Ele me disse: ‘Aníbal, o que você sabe fazer é mexer com roça. Larga isso aqui e vai para a roça. O dia que você não conseguir assistir a missa, o seu trabalho é a sua missa. Tome conta do seu núcleo’. Recebi estas palavras como se fosse um mandato dos próprios apóstolos. Nesses anos todos demos muita atenção às necessidades materiais, mas a finalidade era espiritual, era levar o pessoal para a igreja e para Cristo. Antes de Don Ávila falecer nós voltamos lá e ele nos recebeu relembrando de tudo, pois sempre nos acompanhou. Levei uma fotografia da igreja de São Francisco para lhe mostrar e ele começou a chorar. Com isso prestamos conta a Don Ávila sobre o nosso bom combate. A terceira razão da minha dedicação a Casa Grande é a seguinte: eu tinha feito um concurso para a Câmara dos Deputados e, para tomar posse, tinha que fazer um exame médico. Nesse exame o médico descobriu uma coisa que eu já sabia: que eu era cardíaco e a minha situação era muito grave. Ele então me disse: ‘Aníbal, você não tem condições de tomar posse. Mas como você não tem mais de seis meses de vida, vou dar resultado positivo para que, ao morrer, você possa deixar melhores condições para sua família. Recomendo que você se mude para a área rural onde terá um final de vida mais saudável’. Então eu vim para Casa Grande para morrer em seis meses e estou aqui até hoje, esperando que este prazo não termine tão logo e fazendo este trabalho com todo o entusiasmo. Essas três razões me são suficientes para justificar este trabalho que realizo aqui há 25 anos.

Repórter - Como o senhor avalia este trabalho realizado, juntamente com a dona Dione, aqui em Casa Grande?

Aníbal – Casa grande é uma realização de vida. Eu e a Dione não tivemos oportunidade de ter filhos de sangue, mas tivemos a oportunidade de nos dedicar ao comunitário e social. Combinamos nesse propósito e sempre nos incentivamos mutuamente. Perdemos muitos amigos, porque foi um trabalho constante de dedicação. Não viajamos, não usufruímos da vida para nos dedicar a isso. A Dione reclama muito disso. Eu sinto menos porque antes havia viajado bastante. Estamos presos e afeitos a este lugar. Perdemos amigos, mas conquistamos admiradores. Já falei com você sobre a credibilidade que Casa Grande tem e que foi conquistada, paulatinamente, ao longo de 25 anos de trabalho. Atribuo essa credibilidade ao boletim informativo, onde a gente divulga o que faz: sejam relatos positivo ou negativos, com bons resultados ou fracassos. Aonde nós não chegamos o boletim chega. Somos bastante conhecidos. Muitas pessoas não me chamam de Aníbal e sim de Casa Grande. Já pensei até em mudar de nome. Nossas obras mais recentes, o Centro Integrado de Tecnologia da Informação (CITI) e a sede da sub-administração, estão sendo realizadas com mais facilidade, fruto da seriedade dos nossos atos e do investimento na comunicação. Eu não esperava ver em vida todas essas obras que temos aqui, nem ver nossa comunidade sempre participativa e atuante. Este retorno me deixa cada vez mais feliz.
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